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Hoje já faz um mês, pai. Sabe que a única coisa que entendi até agora é que nós não fomos feitos para dizer adeus para ninguém? Eu ainda estou paralisada naquela terça-feira ensolarada, desnorteada desde a hora que nos ligaram aqui em casa para ir ao hospital, ainda ansiosa e apreensiva igual. Parece tanto que foi mentira!
Fico repensando a voz daquela médica narrando como tudo aconteceu. Lembrando que a partir dali só pudemos te rever no cemitério, já em um caixão, que eu nem sei se foi do seu agrado. Tenho certeza que acertamos na roupa, porque em vida você não tirava ela do corpo. Ainda me pergunto se você sentiu dor com a sua parada cardíaca. Se você percebeu que ia falecer, se resistiu e lutou para voltar, se por acaso se entregou…
Se eu soubesse, teria ido te visitar todos os dias no hospital, em todos os horários. Enganaria os enfermeiros para não sair do quarto quando acabasse o horário da visita e não teria me deixado enganar por você. Porque você sim enganou a todos nós! Estava bem no hospital, firme, consciente, falante. Dando trabalho, solicitando: chá; leite com chocolate; vitamina de ameixa para intestino preso; espelho; prestobarba de três lâminas; shampoo de barbear; remédio para dormir; um peixinho assim; uma sopinha assado… Como eu poderia imaginar?
Se eu soubesse, pai, mesmo sabendo que você não queria, eu teria te pegado no colo, te enfiado no carro e dirigido até o hospital especializado mais próximo. Teria fingido uma história, criado uma cena qualquer para que te atendessem o mais rápido possível. Não teria ficado em casa, sentada, esperando a avaliação para a sua cirurgia, que inclusive “saiu rápido”, eles disseram.
Eu fico lembrando da sua carinha quando te internaram pela segunda vez. Estava com aquele suéter de lã marrom e com a sua toquinha preta. Você ficou tão triste. Saímos do hospital chorando, não queríamos ter te deixado lá, mas era necessário. Saiba que a gente sentiu! Você ficou com o coração partido e nós também.
Se eu soubesse, não teria me preocupado tanto em te proteger desse tal de coronavírus. Teria feito questão de te abraçar bem forte e apertado, ter te tocado e beijado, em todas as últimas visitas.
Agora, tudo o que tenho são seus áudios em nossas conversas do WhatsAPP. Por Deus que fazem três anos que não as apago, que faço backup, que tenho uma galeria na nuvem… ao menos em algum lugar virtual posso eternizar você.
Não posso mais te preparar um cafezinho nem te levar um lanche no salão enquanto você faz um corte de cabelo, ou escova no cabelo da sua fiel cliente Irene.
Se eu soubesse, já teria me preparado para não odiar ouvir as pessoas dizerem que isso foi melhor, porque era da vontade de Deus. Até porque normalmente quem me diz isso são pessoas que ainda têm seus pais e mães ao lado delas. Não sabem que não há palavra consoladora e que faça sentido nesse momento.
Teria me preparado para não odiar também pessoas que simplesmente passam por cima da nossa dor e nos perguntam quando vamos vender suas ferramentas de trabalho, ou o que vamos fazer com os seus pertences.
Se eu soubesse, teria evitado falar com o cara do estacionamento onde você costumava deixar o carro, ele chorou quando soube da notícia, sabia? E eu chorei junto com ele. O cara do posto de gasolina quando me viu dirigindo seu carro, sentiu sua falta e perguntou por você. Ficou impressionado, olhando pra mim triste e surpreso ao saber. Muita gente te conhecia e ainda não sabe, contar pra elas é toda vez reviver essa realidade dolorida.
Se eu soubesse, teria aprendido com você os macetes do seu carro idiota, porque agora tive que aprender sozinha, na dor e na marra. Você teria dado risada se soubesse que ele e eu atravessamos metade da cidade para buscar um botijão de gás. Durante a quarentena houve falha de abastecimento na cidade. Nesse dia, subi uma ladeira inacreditável e tinha um PARE no topo, que dava acesso à uma avenida movimentadíssima. Conseguimos! Mas você não estava do meu lado no banco do carona.
Se eu soubesse, eu teria tentado me abrir mais, já que você era fechado. Teríamos praticado juntos quando você fez aula de dança de sertanejo, porque mesmo com muito empenho e esforço, você continuava duro e sem ritmo. Talvez teria te contado também que beijei um cara do bairro, que já fiquei com um famoso e que aquele “amigo” que veio aqui em casa uma vez, há 11 anos, me trazer uma cesta de chocolates, na verdade era meu namoradinho.
Não teria ocultado algumas publicações de você nas minhas redes sociais e teria te mostrado meu blog, talvez te ensinado a criar um. Há alguns dias acabei encontrando seus papeizinhos. Impressionante. Você gostava de escrever seus pensamentos, né? Afinal, quem mexeria na sua carteira? Genial, pai!
Se eu soubesse, teria me feito entender. Te explicado claramente que embora eu tivesse parado de ir à igreja com você, eu ainda era uma boa pessoa. Que apenas olhando de fora, concluí que religião não define caráter, que tem mais a ver com consciência pesada e que a minha tava tranquila. Teria te contado que tá cheio de religiosos simpaticíssimos por aí que na verdade são presunçosos e só escondem pré-julgamentos e que eu posso ser assim também se eu quiser, sem ter responsabilidades todo domingo de manhã e de noite.
Se eu soubesse, teria me fortificado, me preparado, porque ao menos nesse ponto você não me educou bem. Por causa do seu medo da morte, nunca me ensinou a lidar com ela. Me ensinou apenas a confiar em Deus. Eu confiei e Ele simplesmente permitiu que você partisse.
Se eu soubesse, teria planejado minha vida porque antes eu não sabia o que eu estava fazendo e agora, não faço ideia de pra onde estou indo. A mãe sempre me disse: “não faz malcriação com o seu pai, um dia não terá mais ele e vai chorar”. Como se fosse possível não chorar sua falta em qualquer circunstância!
Ah, pai! Apenas se eu soubesse… teria me certificado de te fazer saber o quanto eu te amo. Você foi mais que um pai, foi o melhor homem que eu já conheci e que conhecerei. De ótimo caráter, respeitador, fiel, honesto, sincero, humilde, simples, ingênuo, trabalhador, inteligente, de bom gosto, bom coração e de uma força de vontade imensa. Que honra a minha poder ter vivido ao seu lado e ouvir das pessoas que meu sorriso se parece com o seu. Que honra a minha dizer que sou a filha do Tino!
Se eu soubesse, pai, teria feito algo. Mas nada disso importa agora porque você não está mais aqui e nada do que eu faça, fale, pense ou sinta, te trará de volta.
Eu sinto muito! Te amo.