Um careta e uma careta apaixonados

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Dois caretas apaixonados

Ele não é fã de balada, jamais colocaria um cigarro na boca e não gosta de bebidas alcoólicas.

Ela odeia cigarro. Ama TV, sofá e gosta de um vinho tinto suave pra acompanhar.

Ele não fica sem música e ela não vive sem assinatura do Spotify. Ela ama dançar e ele está aprendendo a ser o perfeito par.

Ela ama o silêncio e ele ama assistir vídeos sem abaixar o som do celular.

Ela tem um 1,75m de altura. Ele tem 1,86m. Um não suporta o Lula, o outro, detesta o Bolsonaro.

Ele é branco, ela é negra. Ele tem olhos claros, os dela são escuros. O cabelo dele é liso, o dela é crespo-cacheado.

Ele é Palmeiras, ela é Corinthians. Ele sente calor enquanto ela sente frio. Ela gosta de sorrir e ele de fazer rir.

Ela só dirige carro. Odeia caminhões e motos. Mas ele é caminhoneiro e motoqueiro.

Ela tem marcas de alergia e dorme demais. Ele tem tatoos e dorme muito menos.

Pra ela, ele come porções grandes demais, de um cardápio invariável. Ele sabe que ela come quase nada, mas sempre que pode, varia o cardápio.

Ele tem filhos, ela não quer nem pensar. Ele tem pets, ela não quer nem pensar. Ele é da academia e ela ainda está planejando se exercitar. Ele paga sem olhar, ela faz questão de guardar.

Ela é quem foi crente de igreja, mas é ele o homem de fé.

Ele não estava em rede social, ela é quem tinha conta aberta e planejava seus posts. Hoje, é ele quem não fica sem compartilhar o reels do dia.

Os dois têm feridas, mas estar na vida um do outro é o que os faz o futuro planejar. O passado não importa mais e já ficou pra trás.

Os dois amam o ar livre, caminhar e conversar. Os dois prezam o respeito e a própria paz.

Prezam trabalhar, ter liberdade, responsabilidade, tranquilidade e sinceridade.

Os dois prezam a fidelidade.

Um careta e uma careta apaixonados… Eles dão match! Mas estavam fora do radar.

A inteligência artificial não poderia explicar.

Essa conexão só mesmo a Juliana Natale é quem poderia proporcionar, pois só faltava mesmo eles se encontrar.

Crescer, florescer e morrer

Photo from Freepik by jcomp

Uma das minhas maiores realizações foi estar no Canadá, para um intercâmbio de inglês. Quem acompanhou esse feito de perto pode dizer que foi sim uma conquista e tanto.

O mais inesquecível para mim foi a forma tão íntima e particular como fui cuidada. Minha host family, o casal que me hospedou, me tratou como um membro do lar. E creio que esse vínculo tão próximo, de tanto cuidado e respeito por parte da Grace, do Ralph e de todos da família deles, foi o responsável por eu me desenvolver tão bem na língua.

Assim que cheguei, havia flores no meu quarto. A Grace teve esse cuidado ao me receber e confessou que fazia isso com todos os estudantes, mesmo com os homens, pois, considera flores a coisa mais linda, mais viva da natureza. Ela simplesmente adora jardinagem!

Já eu, nunca me dei bem com flores, elas sempre morrem sob meus cuidados. Tenho até um pouco de suspeita em relação a isso, porque dizem que as plantas se alimentam da nossa energia. Será que a minha energia é capaz de matar? Kkkk Acho que não! Essas do vaso de flores que me recebeu no Canadá duraram muito, praticamente os dois meses que permaneci lá.

De toda forma, eu as amava! As colocava na penteadeira, no banheiro, na claraboia, no chão, na cozinha, regava com água filtrada, não deixava perto do ar-condicionado, do abajur… fiz tudo certinho.

Mas já no final do período da minha estadia, elas começaram a morrer. Nada adiantava. Conversei com a Grace e pedi ajuda. Fiquei realmente triste, ao ponto dos meus olhos se encherem de lágrimas e, notando minha preocupação, ela me falou:

“Oh, minha querida! Elas morreram, mas está tudo bem. Flores são seres vivos, como animais e pessoas. Elas não vivem para todo o sempre. O papel delas e crescer, florescer e morrer. O que importa na vida delas é a beleza com a qual enfeitam o espaço enquanto estão vivas”.

Chorei, né? E ela riu.

Sempre que a notícia sobre a morte de alguém me impacta, me lembro das falas da Grace. Crescer e morrer faz parte da vida dos seres humanos, que não são eternos. E estará tudo bem, desde que antes tenhamos florescido.

Aliás, seguindo a lógica da Grace, não teremos morrido antes de florescer. Isso significa que assim que tivermos cumprido o nosso papel nessa terra, estaremos maduros, prontos para sermos recolhidos para o descanso eterno.

Vai lá e se mata, vai!

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Hoje eu mandei alguém morrer. Simples assim: “Vai lá e se mata, vai!’.

E foi no sentido literal mesmo de vida/morte, porque hoje eu sei o que é, o que representa, a dor que causa. Eu sei o que muda na gente. E sabendo de tudo isso, eu fui sincera ao desejar que quem estivesse falando comigo morresse.

Pena que, muito provavelmente, não se tratava de uma pessoa, mas sim de um sistema robotizado de mensagens, mas ok! Expressei meus sentimentos.

Acontece que hoje de manhã, recebi um alerta do aplicativo da corretora de investimentos Rico, informando que não realizam atendimentos via WhatsApp e que caso alguém tentasse contato em nome deles, provavelmente seria tentativa de golpe e roubo de dados. Não deu outra! Umas três horas depois, no início da tarde, entraram em contato. Uma mensagem impecável! Foto de perfil com o logo da empresa, conta comercial e tudo mais.

A raiva me subiu no mesmo instante. Me senti tão vulnerável. Eu sabia exatamente o que estava acontecendo ali. Mas eu só tinha essa certeza porque havia recebido uma notificação no cabeçalho do meu celular horas antes. E se eu não tivesse recebido a notificação? E se eu só tivesse limpado a tela e não lido, como costumo fazer? Além do mais, me questionei como é possível que pessoas de má índole estejam tão equipadas a ponto de saberem quem tem conta na corretora X, Y, Z? Como e por que elas têm acesso aos números de telefones dos clientes? Não estamos falando de gente passando fome, pedindo dinheiro para comer, sabe? É de gente se esforçando demais, com uma inteligência de ponta, para limpar a graninha mínima que você se esforçou para guardar com tanto custo, com tanta renúncia de coisas que poderia ter feito, comprado… Está tudo errado! É revoltante.

Após a mensagem “envie um ‘Oi’ para iniciar uma conversa…”, eu só consegui responder:

“Faz um favor para você e para o mundo? Se mata!”

Fico triste que eu tenha chegado ao ponto de conscientemente ter desejado a morte de alguém. Mas em um caso desses, se eu não desejar a extinção dessas pessoas, muito provável eu tenha passado a desejar a minha própria, por preguiça do mundo.

Nada mudou

Em março desse ano, no Brasil, todo mundo se trancou em casa. As pessoas quiseram se afastar presencialmente do trabalho ou do emprego, evitaram o transporte público e se resguardaram ao máximo. Um vírus que pode ser mortal e que se espalhou de repente e rapidamente causou esse movimento: “Dane-se tudo. O que importa é a minha família e eu estarmos vivos e saudáveis”.

Eu, que tinha acabado de perder meu pai pra morte, também me tranquei. Estava “zero saco” pra vida, pra tudo e todos. Tudo me parecia tão fútil, bobo, sem valor, comparado a dor de ver uma vida amada evaporando da Terra. Complexo, né?

Trancada, acompanhei bem de perto os números e a evolução da pandemia do Coronavírus no país. Começaram a morrer 100 pessoas por dia e a gente lamentava. Morriam 700 e a gente se desesperava. Chegou a 1000 mortos por dia e não tínhamos mais reação. Quando as mortes diárias passavam de 1200, ouvia-se: “É a vida, né! Fazer o quê? Não sou coveiro, quem tiver que morrer vai morrer. Deus sabe de tudo”.

E assim, nos vimos livres da responsabilidade de nos proteger ou proteger os outros, porque a morte está no destino de cada um e quem somos nós pra ir contra o destino das pessoas, não é mesmo? Me pergunto mais, quem somos nós no destino de alguém que não acredita em destino? Fica a reflexão…enfim.

Hoje, eu conheço rostos de mortos pelo covid-19. Nesse mês, me vi tentando ter uma palavra de consolo para pessoas que em março me consolaram quando me vi sem chão ao perder meu pai.

Pra mim, não é algo distante. Tá aí! E independente do destino de cada um, coisa que não nos diz respeito, temos que assumir a responsabilidade pelo bem coletivo e fazer sim a nossa parte.

Sabe o que mudou de março pra cá? Nada. Os números são mais altos, inclusive. Não sou eu quem está dizendo, é o gráfico do Google, olha aí. “Ah, mas a Globo…” o problema não é a Globo, mas sim os relatórios do Governo que é uma zona.

Independente de qualquer coisa, o que eu tenho certeza que aumentou foi o nosso egoísmo em querer viver, acima da vida propriamente. “Eu quero é ver quem eu amo, quero estar perto de quem sinto saudade. Quero ver meus pais, meus avós… Que se dane esse vírus” – as pessoas falam.

“Ah, que saudade, né minha filha? Só você tá sofrendo.”

Não é o vírus que se dane. É a gente que se dana. E quem aparece por aí chorando a morte de um ente querido, não é porque o próprio ente querido não se cuidou, mas sim porque se contaminou e a essa altura, não importa como, quando, onde e o porquê.

Se tivesse escrito na testa das pessoas: quem tem vírus; quem não tem; quem tem sintomas; quem não tem; quem morre; e quem não morre; o Coronavírus não teria se tornado uma pandemia. A gente não sabe nada. Então, continue se cuidando. O risco não mudou. O que mudou foi o nosso medo em relação ao risco, e ter perdido ele é um perigo para nós mesmos. 

Por fim, estar distante fisicamente não significa não estar presente. Muito pelo contrário. Se aproxime de quem você ama, se faça presente, mas acima de tudo, não seja egoísta ao querer saciar sentimentos individuais. Respeite a vida e a saúde dessas pessoas que você afirma amar.

A gente não sabe

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Ilustração 3D do novo coronavírus / Imagem: Handout

A filha da minha amiga pegou Covid-19. Era impossível! A menina só tem 14 anos, não sai de casa e está sem ir para a escola desde março. Porém, de repente apareceu com sintomas.

Por outro lado, a minha amiga trabalha todos os dias e tem saído de casa normalmente. Sentiu-se cansada, mas  achou ser  por causa do trabalho incessante. Teve coriza, mas achou que foi porque mexeu em roupas com bolor… enfim. Ela estava se sentindo normal.

Na ânsia de mostrar para a filha que os sintomas não eram nada e sim preocupação da cabeça da menina, minha amiga fez o teste para Covid-19. Para a surpresa dela, deu positivo. Logo, ela mandou fazer o teste na filha e deu positivo também.

As duas passam muito bem, graças a Deus! E não tinha o que a minha amiga pudesse ter feito de diferente. Ela se cuidou, cuidou da filha, fez e fará tudo o que pode. Perfeito! 

O curioso nesse caso é que a menina apresentou os sintomas, já a mãe dela estava se sentindo bem. E “só os mais velhos pegam esse vírus”, lembra? A questão é que a gente não sabe. Se soubéssemos quem tem o vírus, quem passa, quem fica doente, quem se recupera e quem morre, não estaríamos em situação de pandemia. O mundo não teria parado se as autoridades e a ciência soubessem lidar com o que surgiu.

Você pode dizer: “Agora já temos leitos e respiradores nos hospitais…”. Também, antes tínhamos leitos o suficiente para lidarmos com quem precisasse de uma cirurgia, por exemplo. E nem por isso saíamos por aí nos expondo ao risco de sermos atropelados.

Podemos ter quantos leitos e respiradores forem necessários, nada muda. A gente não sabe nada sobre o coronavírus, mas o fato é que, mesmo assim, a vida precisa seguir. Então, não brinque de roleta-russa com a vida de quem você ama. Continue se cuidando e tomando cuidado!

Separar as coisas

Meu pai era cabeleireiro. Sempre que fechava o salão e vinha almoçar ou tomar café da tarde trazia com ele sua necessaire. Ali ele carregava as chaves de casa, do carro, pequenas ferramentas, remédios, o celular, o tablet, os carregadores, canetas, lápis, bloco de anotações, dinheiro… enfim. Tinha de tudo naquela bolsinha, menos coisas que costumam ser guardadas em uma necessaire, como itens de higiene pessoal, por exemplo.

Ele chegava em casa e colocava essa bendita bolsinha em cima da mesa da cozinha. Isso me irritava tanto! A toalha de mesa vivia suja de cabelo porque a tal bolsinha, enquanto passava tempo na barbearia, não tinha um lugar fixo, ficava em qualquer superfície. É claro que eu chamava a atenção dele, né! Mas os dias se passavam e ele voltava ao mesmo costume.

Como muitos também sabem, ele era Testemunha de Jeová. Lia e estudava bastante a bíblia e assuntos bíblicos. Tinha revistas e livros espalhados por toda a parte da casa. Eu perguntava pra ele o porquê dele marcar território daquela forma. Porque parecia que era isso o que ele fazia: por onde passava deixava um rastro.

Desde que meu pai faleceu, na medida do possível, a casa tem estado sempre organizada. Eu estou em casa e minha mãe trabalhando, então se lavo o banheiro, a cozinha, limpo o fogão e organizo a sala, tudo permanece impecável.

Dia 24 de junho fará três meses que meu pai faleceu. Hoje, a bagunça dele, que no meu ver era o único péssimo defeito dele e que me irritava tanto, não está mais presente. Mas ele também não está e eu choro e sinto muito a falta da presença dele.

Se você tiver a chance, tente amar as pessoas e também o que você considera serem seus defeitos. Porque pode ser que os defeitos façam parte delas e que elas não possam existir sem eles. Talvez não tenha como separar as coisas.

Você sabe o que é lugar de fala?

Se você ainda não sabe o que é lugar de fala, tudo bem, eu te explico. Afinal, eu não nasci sabendo, há alguns anos eu também não tinha esse conhecimento.

Lugar de fala funciona assim: se você não é negro; não tem cabelo crespo; e não tem traços de negro; você não tem como falar sobre racismo e preconceito contra negros, porque você não tem “lugar de fala”. Entendeu?

Você também não critica o Dia da Consciência Negra, nem ações sociais e medidas que auxiliem negros a conseguirem o que você considera serem coisas normais da vida para as quais:
“- Basta a pessoa se esforçar, ué”.
Porque “no seu lugar de fala” você não viveu as mesmas dificuldades. É coisa de pele. Literalmente. E se não é a sua pele, como você pode saber?

Resumindo, “lugar de fala” tem a ver com todas as minorias “abusadas”. É por isso que não cabe afirmar que:
“- Se as pessoas querem igualdade, é preciso tratar todo mundo igual”.
Acontece que “os brancos não foram uma minoria abusada”, entende?

Você pode dizer:
“- Meu bizavô/avô, chegou no Brasil imigrante, sem nada, lutou e cresceu”.
Claro! Que bom pra vocês. É herança que fala isso.

Imagine um negro/escravo que recebeu “liberdade”. Entre outras palavras, ele foi “expulso de casa sem nada”, apenas com a roupa do corpo. E só por ele ter a cor de pele que tinha, era impedido de lutar por qualquer coisa que ele precisasse pra sobrevivência dele, como trabalho e comida, por exemplo. Também é herança que fala.

Meu amigo, essa é uma luta histórica e estrutural. A questão não é que:
” – Ah, meu! Que mi-mi-mi. Mataram um cara lá nos Estados Unidos…”.
A questão é que isso traz luz a algo que acontece também aqui e o tempo todo, nas comunidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, por exemplo. A questão é que SE NÃO TOMARMOS CUIDADO, OS TEMPOS DESUMANOS DE PRECONCEITO E RACISMO, DE ESCRAVIDÃO, VOLTAM!

Mas então, o que fazer pra ajudar se você realmente se importa? Ouvir, aprender, perguntar, respeitar, se colocar à disposição para ajudar no que for necessário. Pontuar outros que talvez também tenham visões distorcidas sobre esse assunto.

Seria a mesma coisa caso você não é mulher e/ou nunca sofreu abuso por parte do seu parceiro, querer falar sobre a mulher nessa condição. Você “não sabe” dizer nada.

Você sabe o que é sentir atração por pessoas do mesmo sexo? Já sentiu? Se não, como pode dizer algo sobre homossexuais?

Você, homem, mulher, já sofreu abuso sexual? Como pode falar algo sobre essas pessoas?

Lugar de fala é algo que vale para tudo quanto é minoria que você possa imaginar. Basta ser humano e se colocar de fato no lugar do outro, não de forma superficial.

Me desculpe pela GRANDE quantidade de aspas! Foi apenas visando facilitar o entendimento de um assunto tão complexo.

Se eu soubesse

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Foto: Chinnapong / Shutterstock.com

Hoje já faz um mês, pai. Sabe que a única coisa que entendi até agora é que nós não fomos feitos para dizer adeus para ninguém? Eu ainda estou paralisada naquela terça-feira ensolarada, desnorteada desde a hora que nos ligaram aqui em casa para ir ao hospital, ainda ansiosa e apreensiva igual. Parece tanto que foi mentira!

Fico repensando a voz daquela médica narrando como tudo aconteceu. Lembrando que a partir dali só pudemos te rever no cemitério, já em um caixão, que eu nem sei se foi do seu agrado. Tenho certeza que acertamos na roupa, porque em vida você não tirava ela do corpo. Ainda me pergunto se você sentiu dor com a sua parada cardíaca. Se você percebeu que ia falecer, se resistiu e lutou para voltar, se por acaso se entregou…

Se eu soubesse, teria ido te visitar todos os dias no hospital, em todos os horários. Enganaria os enfermeiros para não sair do quarto quando acabasse o horário da visita e não teria me deixado enganar por você. Porque você sim enganou a todos nós! Estava bem no hospital, firme, consciente, falante. Dando trabalho, solicitando: chá; leite com chocolate; vitamina de ameixa para intestino preso; espelho; prestobarba de três lâminas; shampoo de barbear; remédio para dormir; um peixinho assim; uma sopinha assado… Como eu poderia imaginar?

Se eu soubesse, pai, mesmo sabendo que você não queria, eu teria te pegado no colo, te enfiado no carro e dirigido até o hospital especializado mais próximo. Teria fingido uma história, criado uma cena qualquer para que te atendessem o mais rápido possível. Não teria ficado em casa, sentada, esperando a avaliação para a sua cirurgia, que inclusive “saiu rápido”, eles disseram.

Eu fico lembrando da sua carinha quando te internaram pela segunda vez. Estava com aquele suéter de lã marrom e com a sua toquinha preta. Você ficou tão triste. Saímos do hospital chorando, não queríamos ter te deixado lá, mas era necessário. Saiba que a gente sentiu! Você ficou com o coração partido e nós também.

Se eu soubesse, não teria me preocupado tanto em te proteger desse tal de coronavírus. Teria feito questão de te abraçar bem forte e apertado, ter te tocado e beijado, em todas as últimas visitas.

Agora, tudo o que tenho são seus áudios em nossas conversas do WhatsAPP. Por Deus que fazem três anos que não as apago, que faço backup, que tenho uma galeria na nuvem… ao menos em algum lugar virtual posso eternizar você.

Não posso mais te preparar um cafezinho nem te levar um lanche no salão enquanto você faz um corte de cabelo, ou escova no cabelo da sua fiel cliente Irene.  

Se eu soubesse, já teria me preparado para não odiar ouvir as pessoas dizerem que isso foi melhor, porque era da vontade de Deus. Até porque normalmente quem me diz isso são pessoas que ainda têm seus pais e mães ao lado delas. Não sabem que não há palavra consoladora e que faça sentido nesse momento.

Teria me preparado para não odiar também pessoas que simplesmente passam por cima da nossa dor e nos perguntam quando vamos vender suas ferramentas de trabalho, ou o que vamos fazer com os seus pertences.

Se eu soubesse, teria evitado falar com o cara do estacionamento onde você costumava deixar o carro, ele chorou quando soube da notícia, sabia? E eu chorei junto com ele. O cara do posto de gasolina quando me viu dirigindo seu carro, sentiu sua falta e perguntou por você. Ficou impressionado, olhando pra mim triste e surpreso ao saber. Muita gente te conhecia e ainda não sabe, contar pra elas é toda vez reviver essa realidade dolorida.

Se eu soubesse, teria aprendido com você os macetes do seu carro idiota, porque agora tive que aprender sozinha, na dor e na marra. Você teria dado risada se soubesse que ele e eu atravessamos metade da cidade para buscar um botijão de gás. Durante a quarentena houve falha de abastecimento na cidade. Nesse dia, subi uma ladeira inacreditável e tinha um PARE no topo, que dava acesso à uma avenida movimentadíssima. Conseguimos! Mas você não estava do meu lado no banco do carona.

Se eu soubesse, eu teria tentado me abrir mais, já que você era fechado. Teríamos praticado juntos quando você fez aula de dança de sertanejo, porque mesmo com muito empenho e esforço, você continuava duro e sem ritmo. Talvez teria te contado também que beijei um cara do bairro, que já fiquei com um famoso e que aquele “amigo” que veio aqui em casa uma vez, há 11 anos, me trazer uma cesta de chocolates, na verdade era meu namoradinho.

Não teria ocultado algumas publicações de você nas minhas redes sociais e teria te mostrado meu blog, talvez te ensinado a criar um. Há alguns dias acabei encontrando seus papeizinhos. Impressionante. Você gostava de escrever seus pensamentos, né? Afinal, quem mexeria na sua carteira? Genial, pai!

Se eu soubesse, teria me feito entender. Te explicado claramente que embora eu tivesse parado de ir à igreja com você, eu ainda era uma boa pessoa. Que apenas olhando de fora, concluí que religião não define caráter, que tem mais a ver com consciência pesada e que a minha tava tranquila. Teria te contado que tá cheio de religiosos simpaticíssimos por aí que na verdade são presunçosos e só escondem pré-julgamentos e que eu posso ser assim também se eu quiser, sem ter responsabilidades todo domingo de manhã e de noite. 

Se eu soubesse, teria me fortificado, me preparado, porque ao menos nesse ponto você não me educou bem. Por causa do seu medo da morte, nunca me ensinou a lidar com ela. Me ensinou apenas a confiar em Deus. Eu confiei e Ele simplesmente permitiu que você partisse.

Se eu soubesse, teria planejado minha vida porque antes eu não sabia o que eu estava fazendo e agora, não faço ideia de pra onde estou indo. A mãe sempre me disse: “não faz malcriação com o seu pai, um dia não terá mais ele e vai chorar”. Como se fosse possível não chorar sua falta em qualquer circunstância!

Ah, pai! Apenas se eu soubesse… teria me certificado de te fazer saber o quanto eu te amo. Você foi mais que um pai, foi o melhor homem que eu já conheci e que conhecerei. De ótimo caráter, respeitador, fiel, honesto, sincero, humilde, simples, ingênuo, trabalhador, inteligente, de bom gosto, bom coração e de uma força de vontade imensa. Que honra a minha poder ter vivido ao seu lado e ouvir das pessoas que meu sorriso se parece com o seu. Que honra a minha dizer que sou a filha do Tino!

Se eu soubesse, pai, teria feito algo. Mas nada disso importa agora porque você não está mais aqui e nada do que eu faça, fale, pense ou sinta, te trará de volta.

Eu sinto muito! Te amo.

Mais que um momento

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A princípio, eu não acreditei que você fosse real. Mesmo após te ver, imaginei que pudesse ser alguém se passando pelo “real você”. Mas eu não estava nem aí, aliás, eu ainda estava sofrendo muito por uma desilusão amorosa. Uma paixão que me moveu em direção a sentimentos que relutei por “uma vida inteira”.

A queda ainda doía, então fui procurar alento em outros braços. Por isso, concluí que se aquela pessoa não fosse você, mas alguém fisicamente parecido, já valeria a pena. Me interessei pelo “fake” pela simples criatividade dele em te imitar.

Ingênua que sempre fui, nunca tinha imaginado ir logo de cara à casa de um “estranho”. Quer fosse ele quem fosse! No entanto, logo depois de te perguntar para onde estava me levando, me vi pensando: “Ok, somos adultos, bora seguir o fluxo e viver!”.

No final daquela noite, ainda lembro de você me perguntar “o que houve?”, tentando entender meu passado e meu “estado intocável”. Eu segurei a vontade que me veio de chorar ao responder: “nada demais, ele e eu não demos muito certo”.

Naquele dia, o correto seria eu ter saído do nosso encontro em êxtase, eu acho. Mas não, eu estava normal. Ainda tinha sentimentos por outro, mágoa. Não me senti nem um pouco culpada porque você também havia me dito que há poucos dias tinha saído de um relacionamento sério. E já que ninguém esquece alguém tão rápido, de forma repentina eu havia claramente entendido nossos papéis naquele encontro. O que me deixou bem confortável!

Papo vem, papo vai, mais algumas vezes juntos, um encontro péssimo e ficamos sem nos falar. Indignada e com saudade, ainda tentei contato por mais uma vez. Queria me desculpar, queria que ficasse tudo bem e que não deixássemos de nos falar mesmo depois daquele dia horroroso.

Para a minha surpresa, foi aí que percebi sua indiferença, senti que pra você tanto faz. Entendi que se eu não “me esforçasse” para falar com você, você também não falaria comigo.

Tudo bem. Vou seguir meu caminho tentando não me frustrar, não me culpar. Porque sei que viver é aproveitar momentos e seguir adiante apenas com as pessoas que são relevantes para as nossas vidas. Logo, foge do meu controle prever se irei ou não passar de um momento para alguém.

 

Será que você se importa?

Será que você se importa com o quanto eu senti a sua falta? Com o quanto chorei com a sua indiferença e ainda choro sempre que me lembro de te ver partindo pra longe de mim?

Sim, abri mão de você, eu sei. Foi minha culpa também, eu devia ter lutado por você, por nós. Porém, eu não vi vontade da sua parte. Muito pelo contrário, não passou dois tempos antes de se distanciar, antes de desaparecer. Ainda dói, dói todos os dias. E todas as noites os meus olhos não me deixam esquecer, as lágrimas correm pelo meu rosto e desaparecem em meu travesseiro.

E sabe o que dói tanto? Eu sempre ter estado aqui pra você, de peito aberto, boa vontade, de alma pura, mente limpa e coração vazio pra você encher. Me encheu com sentimentos que eu não conhecia: saudade, frustração, desilusão, desconfiança, desamor e dissabor.

Pobre de mim! Pensei que você seria o homem a me poupar de outros homens que pudessem fazer eu me sentir assim, mas você foi pioneiro.

O que eu faria ao te reencontrar? Não sei. Só o tempo irá me dizer, mas prefiro te deixar em paz para jogar com outros corações, corpos e mentes. Eu não sei jogar!